quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

És tu




A chuva começou a cair, estava tanto frio, eu estava quase despido, e a água misturada com a terra fazia-me escorregar.
Vagueava por ali, tropeçando nesta ou naquela verdade, nesta ou naquela memória.
Eu procurava-te sem saber, por montes de ruínas e vales de incertezas.
Os meus pés deixavam de sentir o chão, a minha boca tremia, e só havia silêncio. Penumbra, vestígios do que vivi, tudo em suspenso.
Eu precisava de outro sitio, os caminhos que conhecia estavam gastos, os meus olhos já os haviam percorrido, sempre, todos os dias, conhecia-lhes tudo. Eu sempre caminhei, viajei, assim.
Para chegar até ti.
E quando te vi, no regaço quente de uma árvore, qual luz que iluminou a minha alma, senti-me abençoado, senti-te de imediato em mim.
Estamos aqui somos nossos e de mais ninguém.
Gritámos então os nossos nomes aos ventos, percorremos as águas, celebrámos o nosso fogo com beijos.
Entendi então que na imensidão das palavras e dos gestos não morre o desejo. Não morremos.

terça-feira, 18 de janeiro de 2011

Projecto Van Gogh.

Hoje de pé quieta imóvel
Preparada para acção
Para a festa eminente do nosso encontro
Perdi a voz.

Não consegui cantar,
Não saiu nada,
As minhas mãos tremiam
As minhas pernas não reagiam
Ao impulso de querer sair dali
E chorar sozinha.

Perguntei-me vezes sem conta,
Para onde foste?
Porque levaste contigo a minha força
E o meu falar?
Porque tomaste para ti o que não te pertence, sem dizeres nada?
Porque não vieste assistir à minha desgraça?

Então, quando me tiraram dali
Levaram-me para longe das luzes
E percebi, que não foste tu que me calaste
Que não foste tu que me gastaste nas tuas mentiras
E utopias macabras.

Fui eu, que me esqueci de respirar sozinha
De como é perigoso pisar aquele chão,
De como é inteligível o meu silêncio
E o silêncio do mundo
Agora que deixaste de me aprisionar.

Viver comigo é um desafio
Aprender-me novamente também,
Mas é bem mais saudável
Que tentar te salvar.

segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

Grito




estou com frio
aquece-me
estou com sede
dá-me de beber
estou com fome
deixa-me comer-te.

estou com falta de ti
do teu sabor que nunca provei
das tuas mãos que não senti
percorrer o meu corpo
agarrarem os meus cabelos.

estou com falta de ti
e os dias são largos
e cheios de luz
uma luz intensa que me queima os olhos
e não me deixa vislumbrar a tua face
senão de noite quando os fecho.

estou com falta de nós
e aguardo o vento que te trás ou o mar que me agita
aguardo o teu corpo
aguardo a vida.

quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

Insónia




Alto, profundo, sedento
Sem medo
Quando me desci da carruagem,
Agarrou-me a cintura e roubou-me um beijo.
Depois pegou a minha mão
E levou-me pela estação fora
Falando, gabando-se da minha presença.
E eu sentia apenas o sonho,
A atmosfera demasiado irreal.
Corpo dourado tatuado de enigmas,
Sinto longe a sua força
E na absurda tentativa de tornar as coisas efectivas
Trago até mim de novo a insónia.
E ele desfaz-se nas minhas dúvidas e receios
Como o fumo do cigarro, que sei que leva,
Religiosamente, à boca.
Olho para o lado,
E na minha cama encharcada do suor erótico deste exorcismo,
Não está ninguém,
Apenas o meu corpo apedrejado.
Levanto-me, preciso saciar a minha boca,
Se aqui estivesses diria que a minha saliva se esgotara nos teus beijos,
E que a tua se gastara com tanto tocar a minha pele quente de desejo.
Quero dormir contigo.
Volto a deitar-me na cama, agora fria
Cansada por não poder foder-te,
Por me esgotar sozinha em mim.
Fecho os olhos,
Ele é como um leão,
Agarro lhe o cabelo e a sua boca percorre
O meu pescoço
As minhas orelhas,
O meu rosto,
Os meus seios,
E depois olha-me,
E deixo de existir, de pensar, de respirar.
Estes olhos são os meus e neles vejo-o,
Ainda que eu seja eu.
Depois fala comigo,
E a sua voz parece tocar-me,
Arrepia-me a pele.
Suavemente agarra as minhas costas,
As minhas coxas,
E num abraço digo-lhe que não quero ir,
Que posso confundir a minha existência na sua.
Ele ri-se e dá-me um outro beijo.
A sua língua entra e percorre a minha boca,
É uma língua doce e sábia,
E não atrapalha a minha.
Depois num instante, quase sem me aperceber como,
O orgasmo irrompe pela minha garganta.
Ofegantes.
Não quero acordar.
Quando a manhã me chama percebo a derrota utópica a que me dei.
Mas quero mais.

domingo, 9 de janeiro de 2011

What Would Elvis Do?

Salta-te o sal da pele
Expões-te ao calor negro da intensidez
Fatídica do rock & roll
És um velho caído no chão
Sem camisa
Um asno bruto, gritante.

Cospes na cara de Deus
E viras as costas à tua mãe
Para depois ires chorar no colo deslavado
De uma puta qualquer.

Cresce. Faz-te um homem.
Faz-te alguém melhor
Do que esse corpo inchado e corrupto
Que te habituaste a usar.

sábado, 8 de janeiro de 2011

Sinal

ele disse que estava interessado
em me atirar contra as paredes
em viver um pouco do passado.

falou comigo embriagado
sem medo daquilo que eu pudesse pensar.

nunca pensei que nos seus violentos olhos
penetrasse uma admiração tamanha,
para mim sempre foram olhos vagos
medonhos de tão grandes e inexpressivos.

falei com ele ressacada
sem medo daquilo que pudesse arrastar.

vivemos o tempo
no imprevisto previsível daquilo que queremos ter
e na surdez da manhã branca
deito-me outra vez
sem perecer,
detida pelo cruel pormenor do seu retrato
que por sorte crua me deixou mais dez minutos
no sitio exacto da salvação.

terça-feira, 4 de janeiro de 2011

I have spread my dreams under your feet, tread softly because you tread on my dreams.


O amor faz reféns

Estiveste alguma vez apaixonado? É horrível, não é? Fica-se tão vulnerável? Ficas com o peito e o coração abertos e outra pessoa pode entrar dentro de ti e revolver-te por dentro. Constróis todas essas defesas, constróis uma armadura que te core de alto a baixo para que ninguém te possa ferir, e depois uma pessoa estúpida, igual a qualquer outra pessoa estúpida, atravessa-se na tua estúpida vida... Dás-lhes um bocado de ti. Não to pediram. Fizeram um dia uma estupidez qualquer, como beijar-te ou sorrir-te, e a tua vida deixou daí em diante de ser tua. O amor faz reféns. Entra dentro de ti. Come-te e deixa-te a chorar no escuro, e é assim que uma simples frase do tipo "talvez devêssemos ser só amigos" se transforma num estilhaço de vidro que te vai direito ao coração. Dói. Não é só na imaginação. Não é só mental. É uma dor da alma, uma dor real que te invade e te rasga e te parte. Odeio o amor.
N.G.

domingo, 2 de janeiro de 2011

Três Alentejos e Uma Lisboa









Para te trazer sol num dia branco.
Para tentar dar ânimo e força.
Para escreveres, se te apetecer.





J.S.

Dormindo

Desço a rua
Aberta ao fim da tarde
De inicio ninguém caminha comigo,
Mas à medida que vou chegando mais perto do rio
Outros se juntam a mim.
Não gosto desta companhia.
Tento esquecer-me do que já fiz aqui,
Das vezes que caminhei contigo
Com eles
Com os outros,
Mas é impossível,
Esta rua está apinhada de memórias
Está cheia de uma violência emocional sem fim.
Olho para os bancos desertos
E sinto o sol que outrora me tocou
Mas ele já não existe,
Existe esta penumbra que não deixa vislumbrar as estrelas
A noite encerra o dia aqui.
Só vim porque ele me pediu,
Porque na sua ausência e desprezo
Me pediu que fugisse de mim
Para me salvar,
Para tentar ser feliz.
Então eu vim,
Desci a rua sozinha,
E encontrei nela motivações
Talvez mesquinhas
Mas as únicas que me fizeram continuar
Talvez as únicas que ainda são a minha razão de viver.
Cansei-me da tua perseverança insólita
E da tua inércia
Lavei-te a cara em sinal de respeito,
Lavei-te as mãos como prova do meu amor,
Lavei-te os pés para que seguisses a tua caminhada
Sem mim.
Esperei por ti e não mais quero fazê-lo
Não posso esperar por mais ninguém
Estive aqui, caminhei contigo
Só para dizer que chegaste ao fim.

sábado, 1 de janeiro de 2011

A paz triunfou, mas como vão ser as coisas agora?

"(...) e quando ela pensa nessa geração de homens silenciosos, nos rapazes que passaram pela Grande Depressão e cresceram para se tornarem soldados ou não-soldados na guerra, não os censura por se recusarem a falar, por não quererem regressar ao passado, mas que curioso que é, pensa ela, quão sublimemente incoerente é o facto de a geração dela, (...), ter produzido homens que nunca páram de falar, (...), que desatam a falar de si mesmos ao menor estímulo, que têm uma opinião firmada acerca de todos os assuntos, que vomitam palavras de manhã à noite, mas lá porque falam não quer dizer que ela os queira ouvir, ao passo que com os homens silenciosos, os velhos, aqueles que estão prestes a deixar-nos, ela daria tudo para ouvir o que têm a dizer."

P.A.