quinta-feira, 23 de setembro de 2010

Coco Prado

De manhã, sentas-te por breves momentos à mesa, na cozinha. Entornas o leite no chão. Abres a tua boca envolta de rugas e barba, a tua saliva é espessa, e o teu hálito é inevitavelmente matinal, sorves o leite com tanta pressa, fazes me ficar ansiosa, fazes me ficar nervosa.

Tremem-te as mãos. Estás atrasado para a apartação.

Não quero ir contigo, vamos embater contra qualquer verdade cruel e eu não sei se quero lutar contra a morte. Sinto-me cada vez mais inútil.

Tremem-te as mãos. Entregas-te às drogas. Ficamos aqui olhando o céu, até chover. Os cigarros que fumamos vão ficando molhados, e as chamas apagam-se. A terra à nossa volta transforma-se em lama.

Tu já te foste, partiste. O dia já passou e eu não vi nada, senão breu e trevas.

Vem buscar-me. Prefiro morrer contigo na pressa de ser fiel aos compromissos injustos do mundo, do que definhar na crueldade da indiferença.

Então pegas-me ao colo, como se eu voltasse a ser pequenina em teus braços, e como se tu voltasses a ser vigorosamente jovem. Eu escorro água, lágrimas e sangue. No meio de tanta dor, não me sinto.

Não sei o que aconteceu. Não sei onde estou. Não sei quem me leva. Não sei para onde me levam.

Dói-me o corpo, dói-me a cabeça, dói-me o coração. As minhas mãos estão fechadas. Caí e tu não me levantaste.

Esqueci-me que já não estás aqui. Só agora percebo que perdi o teu fim.

1 comentário:

Isis Galvão disse...

Miró!

Eu adoro o seu blog, desde que voltei de Portugal nunca mais li nada. Hoje resolvi voltar e ler seus textos, sempre muito, muito afinados.

Sigo te acompanhando. Tá linkado no meu blog.

Saudades
Beijos brasucas