sexta-feira, 23 de outubro de 2009

A última noite em que te vi (Série de Narrativa - II)

A noite fria e escura não anunciava a queda daquele império estranha e subitamente estabelecido, eram antes as nossas mentes, era antes uma revolta interior muito silenciosa e controversa.

Eu não queria admitir que estava a desejar o fim da minha felicidade. Tudo isso era por demais ilógico e masoquista. Mais uma vez eu desejava sofrer.

Comecei a pensar que talvez seria esse o meu estado mais pleno. Sentia saudades dessa incapacidade de ser feliz, de me sentir satisfeita.

Foi nessa noite que eu me apercebi de que me perdera, de que deixara de conhecer aquilo que estava à minha volta, aquilo que havia adquirido a muito custo.

Fiquei desiludida, fiquei chocada, enjoada com a minha decisão.

Não havia nada a fazer, eu queria abandonar-me. Precisava de deixar tudo para trás. E porquê?

Porque queria apagar os vícios, apagar a mentira com que havia sustentado a minha efémera felicidade.

Sim, agora entendia que tudo aquilo era uma farsa, uma ilusão. Havia consentido que a mentira se instalasse na minha vida, como um mal menor, e agora que havia atingido os meus objectivos, não olhando a meios, sentia-me mal, sentia-me impura.

Ganhámos o melhor prémio de todos. Tudo era completo, tudo dançava ao ritmado sentir da felicidade, tudo sorria e transpirava satisfação.

Eu sentia-me inquieta.

De bicos dos pés, pedia uma bebida ao balcão, e sentia-me observada. Eu sabia que me olhavam, e por isso era ainda mais excêntrica. Pavoneava-me. As luzes da ribalta estavam sobre mim e eu adorava, deliciava-me com cada fino olhar que pousava sobre mim.

Todos me davam os parabéns, e a minha resposta era sem excepção um seco e frio: "Obrigada...", seguido de um falso sorriso, infestado de indiferença.

Nem o álcool me fizera mais sensível. Estava na mesma. Naquela noite eu era uma autêntica besta.

Olhei para ti tão doce, tão delicado. Estavas à minha espera para festejar aquela alegria súbita. Olhei-te nos olhos, como se te quisesse arrancar à força a alma. Eu já não sabia quem tu eras, e precisava de saber. Eu estava espantada com a minha frieza amnésica, com a minha estupidez.

A mesma pergunta ecoava na minha cabeça freneticamente enquanto tu me agarravas para dançar: "Quem és tu? Quem és?". E eu não obtinha qualquer resposta... Então abraçava-te longamente, talvez o contacto com o teu corpo me ajudasse a recordar. Mas nem o teu perfume, ou a textura suave da tua barba me ajudaram. Eu continuava na incógnita.

Então, roubei-te um beijo. Tu quiseste-o breve, mas eu prolonguei-o, na esperança inútil que a tua saliva despertasse em mim alguma memória.

Irritada agarrei-te firmemente as mãos e dancei contigo, acelerando o passo. Louca com o rodopiar de sensações, com o excesso de álcool e drogas eu parecia inabalável, intocável, senão pelas tuas mãos supostamente conhecidas.

Era isso! Quem não me conhecesse e olhasse para mim veria uma bomba pronta a explodir. No entanto tratava-se de uma implosão.

As minhas entranhas retorciam-se, abalavam-me, entregavam o meu cérebro à miséria, contorcendo-o, espremendo o meu coração, de tal maneira que já não havia réstia de sangue ou pingo de amor vivo que dali brotasse.

Já tudo havia terminado, todos queriam partir. Mas os meus pés impeliam-me para aquela dança, como que para espantar a dura realidade com que me havia deparado, como que a sacudir a verdade interior que havia descoberto.

Partimos então.

Eu fui quase arrastada.

Regressámos a casa.

A noite era escura e fria.

Eu fitava a estrada. Havia uma tensão no ar. Eu e tu franzíamos as nossas testas. Mal falámos durante todo o percurso, parecia que já não havia nada a dizer, havia tudo sido dito. Haviam-se esgotado as palavras.

Olhava-te de tempos a tempos.

Continuava com aquela estranha sensação de que estava com um desconhecido.

Pedi-te que dormisses comigo nessa madrugada, pois achava que se ficasse sozinha desapareceria mesmo, levada por tanta confusão. Não sei se a tua presença ajudou verdadeiramente.

Olhei para ti até adormeceres, beijei-te os lábios macios, senti o odor quente da tua pele, encostei o meu ouvido ao teu peito, ouvi o teu coração bater, e assim adormeci.

Essa foi a última noite em que te vi.

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